LIBERDADE ALFORRIADA:
Mulheres
que libertam mulheres
Rogerio Carlos Petrini de Almeida[1][2]
Resumo
A história dos afrodescentes
no Rio Grande do Sul deve ser visionada em seus mais diversos aspectos, seja na
herança cultural entrelaçada a cultura local, ou por impregnar o meio social
com suas atividades manuais deixando o senhorio, refém de seus serviços. O texto foca especialmente na relação entre
mulheres: senhora e escrava e na concessão de sua alforria, na forma de
alforriamento, buscando exemplos em registros existentes, extraídos dos atos
notariais, arquivados em Porto Alegre - RS. Fundamentam-se na pesquisa
bibliográfica resultando na solução do problema levantado onde alcança a
efetiva participação feminina na libertação do cativo.
Palavras-chave:
Alforria. Escravo. Mulher. Liberdade.
MANUMISSION:
Women who liberate women
Abstract
The history of Afro-descendants in Rio
Grande do Sul must be viewed in its most diverse aspects, whether in the
cultural heritage intertwined with the local culture, or by impregnating the
social environment with their manual activities leaving the landlord hostage to
their services. The text focuses especially on the relationship between women:
mistress and slave and the granting of their manumission, in the form of
manumission, looking for examples in existing records, extracted from notaries
acts, filed in Porto Alegre - RS. It is based on bibliographic research
resulting in the solution of the problem raised where effective female
participation in the release of the captive reaches.
Keywords: Manumission.
Slave. Woman. Freedom.
1- INTRODUÇÃO
O
estudo se propõe a tematizar a ação da alforria, carta de liberdade, concedida
pela senhora do escravo, motivada pelos serviços prestados ou pela influência
impregnada pelo escravo no seio da família. Alforrias sem ônus, condicionais ou
pagas. Uma pesquisa bibliográfica, que procura centrar entre os anos de 1700 e
1800, os propósitos para o texto, sem querer exaurir o assunto, mas apenas
emblematizar a questão dos libertos, antes do firmamento da Lei Áurea e da alusão
a queima de todos os registros proposto pelo Decreto Federal de 1890.
Justifica-se o estudo sobre este
assunto por se constatar pouca e escassa menção da atuação feminina na
concessão de carta de liberdade e por consequência trazer algumas informações
sobre as condições de libertação do escravo. Fundamenta-se e se exemplifica
buscando as informações existentes nos registros da Cidade de Porto Alegre -
RS, onde já havia manifestação, por escrito, desde a época de 1750.
O
objetivo geral recai na participação da mulher na relação senhora e escravo,
visionando especificamente observar o poder desta senhora em consentir a
alforria, compreender os motivos que levaram a concessão e mencionar as leis
que se anunciavam na época.
O texto questiona: quais as condições
da Senhora do cativo em conceder a carta de liberdade? E levanta-se a hipótese
que a boa relação e atuação do cativo com sua senhora promovem a sua
libertação. Que o cativo tinha liberdade de exercer atividades ganho
economizando para obtenção sua alforria. Que havia uma relação harmoniosa entre
senhora e cativo.
O estudo projeta reunir informações
que proporcionem a solução do problema e articular as hipóteses levantadas de
forma a registrar uma consideração final, apoiasse na pesquisa bibliográfica e
exploratória para fundamentar o estudo.
2 ALFRORRIAMENTO DE MULHERES
O ingresso dos nativos africanos no Brasil
colônia e Império perduraram
entre os anos de 1549 a 1850. Neste período a maior diáspora ocorreu entre os
séculos XVII e XVIII; ocasionada pela necessidade de mão de obra barata para atividades
da colônia, sendo os portugueses os maiores comerciantes deste gênero. O
Brasil, por sua vez, recebeu, neste período, cerca de 4.000.000 de africanos
subsaarianos (Brito, 2012). Em se tratando do Rio grande do Sul, para uma noção
quantitativa registramos que: em 1862, a região contava com 315.306 almas
livres e 77.419 escravos dos quais 17.024 estavam nas freguesias de Porto
Alegre, comarca que contava com 77.872 de almas livres. Registrava-se uma
proporção próxima de 50 % entre homens e mulheres escravos e em sua grande
maioria com idades até 40 anos (CAMARGO, 1868).
Antes
da promulgação da Lei que abolia em definitivo o processo de escravidão, o
Brasil Colonial sofreu ações contrárias ao processo de escravização. O tratado
de 1810 entre Portugal e Inglaterra impunha uma limitação do comércio de
escravo para as colônias portuguesas ampliando as restrições de comércio humano
fora das colônias portuguesas pelo tratado de 1815. Com a independência, em
1822, o Brasil reitera o tratado com a Inglaterra coibindo todo o tráfico de
escravo para o Brasil. Surge a primeira Lei em novembro de 1831, que tornava
livre todos os escravos, que entrassem no Brasil, por meio deste tráfico
humano. Com ação mais enérgica influenciada por pressão da Inglaterra é
promulgada a Lei n. 581 de 04 de setembro de 1850, chamada de Lei Eusébio de
Queiroz que coloca medidas repressivas ao tráfico de escravo. Leis que foram
insuficientes ao combate deste comércio, pois se registraram na época mais de
800.000 ingressos de escravo, no período de 1830 a 1856. (MAMIGONIAM, 2017,
p.11).
Não
foram apenas os tratados que ergueram os sentimentos abolicionistas, mas os
ideais de direito universal, bem-estar e a liberdade que circulavam entre os
diversos campos da sociedade ocidental, e focaram no exemplo da escravidão
africana na posição de um mundo livre questionando a legitimidade deste
comércio exigindo seu fim. (BRITO, 2012, p.70).
Há
uma nítida percepção que estes sentimentos já estavam enraizados na colônia
brasileira, pois se verificam através das cartas de alforria propostas de
libertação do cativo. Dos anos de 1748 até 1888, quando foi promulgada a Lei
Imperial 3.353 (Lei Áurea), constata-se nos registros notariais de Porto Alegre
– RS a crescente concessão de carta de liberdade, destacando-se o ano de 1884
com a marca de 1018 manumissões. Lembrando que em 1884 a escravidão era extinta no Ceará e no Amazonas, e
neste mesmo ano entra em votação a Lei dos Sexagenários, Lei 3270 que vigora a
partir de 28 de setembro de 1885, conhecida como a Lei Saraiva Cotegipe que
garantia a liberdade aos escravos com mais de sessenta anos.
Os
números de carta aumentam na década de 1880, provavelmente pela existência da
Lei 2040 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), que declara em condição
livre todos os filhos de escravos nascidos no Império a partir da publicação da
Lei e responsabiliza e obriga os senhores da escrava a criá-los até os oito
anos de idade. A condição de liberdade é condicionada e pressupõem vinculo e
ônus a serem cumprido até os 21 anos. Ao mesmo tempo a Lei diz em seu “Art. 3º.
Serão anualmente libertados em cada província do Império tantos escravos
quantos corresponderem à quota anualmente disponível do fundo destinado para a
emancipação.” (SEED, 2019) e em seu Art. 4º, regra de alguma forma a alforria.
A
alforria palavra de origem árabe com significado de “liberdade” passou a ser no
Brasil o ato que o proprietário do escravo concede a sua liberdade (DICIO,
2019) e apresenta-se em três formas de concessão:
a)
Alforrias sem ônus – quando o
proprietário concede a libertação ao cativo sem restrições ou pagamento de
ganho;
b)
Alforrias condicionais – quando o
proprietário do cativo coloca condições a serem cumpridas para que se alcance a
plena liberdade;
c)
Alforrias pagas – liberdade conseguida
pelo pagamento da importância exigida pelo proprietário.
As três formas de concessão são
apresentadas por Moreira (2007) e este estudo apresentará em sua sequência, exemplo
das alforrias supracitadas com caráter ilustrativo e como alusão ao motivo pelo
qual o proprietário ou proprietária se propôs a conceder a carta de liberdade
ou carta de alforria, que se constituía no documento oficial de libertação e
normalmente era registrado em cartórios para garantir a condição da concessão
de manumissão.
Aos registros de cartório tem-se que
reportar a pretensão do governo brasileiro em apagar os vestígios de registro
de escravos através do Decreto de 14.12.1890, assinado por Ruy Barbosa,
alegando ser por honra da pátria. De igual forma o ato num. 510 de 29.06.1891,
do Rio Grande do Sul, determina que todos os livros, papéis e registro sejam
destruídos, como se tais procedimentos fossem apagar as memórias do passado
(MOREIRA, 2007, p.85). Restam, porém, diversos registros que permitem
fundamentar este texto.
A
Sra. Joana Belo concedera a Francisca, mulher parda, em 10/05/1771 sua carta de
alforria, fazendo o registro desta apenas em 14/10/1775, em Triunfo - RS.
Descreveu em sua carta de liberdade que concedia a liberdade pela atenção aos
bons serviços prestados, pelo prazo de 30 anos. Quanto a Francisca podemos
considerá-la como uma provável mestiça indígena, não necessariamente de origem
africana, pois o termo pardo na época era empregado para este tipo de raça e
mais contemporaneamente veio a ser empregado para outras mestiçagens. O fato de
ela servir 30 anos à sua proprietária implica em entrelaçamento de culturas
passando e recebendo influências pelo convívio diário. O poder da Senhora em
conceder a manumissão, nos remete a um sistema matriarcal, onde a proprietária
do cativo, e lê-se que a mulher brasileira mantinha escravo, sobre seus
serviços, e tinha o direito de conceder a liberdade sob sua vontade. (MOREIRA,
2007, pg. 101). Tem-se a consideração de Sérgio Buarque de Holanda que o regime
da família era patriarcal, desde tempos remotos (HOLANDA, 1978, pg. 105).
Na
leitura do registro supra não nos é possível alcançar a amplitude da liberdade,
pois se desconhece as condições de vida do liberto, qual de fato seriam a sua
idade e saúde, possuírem condições de moradia afastada da proprietária e as
reais condições de ganho para sobrevivência. Uma liberdade sem ônus para a
Senhora matriarcal, ou com ônus para o liberto. A possibilidade última é a
provável tendo em vista sua condição servil por 30 anos.
A
Sra. Antônia Maria da Silva, preta forra, concede em 01.01.1808 a alforria a
Joana Firmina, filha de escrava Benguela[4]
da mesma senhora, o registro ocorreu em 13.01.1810 na localidade de São Luís de
Mostardas. A carta foi concedida com a condição de o escravo servir até a morte
da senhora. Por não saber ler nem escrever, a senhora pediu a seu ex-senhor, o
Capitão Antônio Gomes de Carvalho, que a fizesse e assinasse a rogo (MOREIRA,
2007, pg. 164).
Na
leitura deste registro pode-se verificar a participação da mulher proprietária
de escravos, sendo ela própria alforriada e afrodescendente, isto se constata
em face da indicação de “preta forra” existente no registro e que remete a essa
significação. O fato de ser preta forra não a impediu de ter sobre sua posse
escravos pretos, nem a inibiu para remetê-la a esta condição de posse sobre seu
semelhante. A alforria é condicional, visto impor ao escravo a obtenção plena
liberdade, após a morte de sua senhora. Esta condicional, não era incomum, a de
um proprietário liberar o servil após sua morte. Nesta circunstância entendesse
que a mulher negra detentora de posse tinha poder de manumissão ao seu alcance.
Isméria
Perpetua, mulatinha, cor da mestiçagem entre bancos e negros, filha de escrava,
nascida no Brasil, recebeu a carta de liberdade em 24.12.1844 da Sra. Rafaela
Pinto Bandeira Freire, registrada em ofício apenas em 24.01.1853, cuja carta
continha na descrição, que foi liberta mediante pagamento de 300$ (réis)
efetuadas pela crioula[5]
forra de nome Helena, ou seja, escrava negra nascida no Brasil que obteve sua
alforria. Temos, por conseguinte, uma mulher ex-escrava com posse e direito de
promover o pagamento necessário a libertação de outra pessoa, neste caso também
mulher, cuja posse recaia em outra mulher, tida como proprietária. Uma trilogia
que evidencia a efetiva participação do elemento feminino na construção desta
memória de relação servil e alcance da liberdade. Não se apurou nos registros o
apontamento do motivo do pagamento e o destino da liberta (MOREIRA, 2007,
p.144). Observa-se por oportuno que se trata alforria paga, sendo frequente a
estipulação de um valor para concessão de manumissão, pelo Senhor ou Senhora da
pessoa servil.
Parece-nos
pelo último exemplo supramencionado que a compra do alforriamento só poderia
ser executada por outra pessoa que com ganho e cujas economias alcançasse o
preço estipulado, mas não, o próprio servo poderia providenciar sua própria
liberdade, mediante a disponibilidade de suas reservas pecuniárias, como no
caso de: Joana de 39 anos tida como de cor “África”, que recebe sua carta de
liberdade em 24.03.1876, da Sra. Zeferina da Silva Pacheco, mediante o
pagamento, pela escrava de 500$ (MOREIRA, 2007, pg.357). O que nos leva a
cogitar a possibilidade de a mesma poder exercer atividades remuneradas e de
ganhos que permitiram efetuar tal poupança, ao mesmo tempo sugere uma relação
de harmonia entre a proprietária e a servil, que finaliza na sua liberdade.
Por
fim aparecem exemplos de situações como o de Laurinda, mulher parda, com duas
filhas de 03 e 08 meses, tem sua alforria concedida em fevereiro de 1858,
mediante pagamento, pela escrava, de 500$, mas com a condição de a escrava
permanecer em companhia de sua senhora até a morte (MOREIRA, 2007, pg 248). Uma
nova forma de alforria que pode ser considerada mista, paga e condicional ao
mesmo tempo, podendo haver outras situações semelhantes, porém não pesquisadas
por não se tratar de objeto deste estudo. Observa-se pelo registro, que nesta,
como em outras épocas, a pessoa servil, teria condições de buscar ganhos
suficientes para gerar seu pecúlio, que possibilitaria a obtenção de sua carta
de libertação.
Quanto
às possibilidades de ganho do escravo temos as colocações de Schwartz(1998):
O
escravo que conseguira o direito por seu proprietário em testamento ou outro
documento, de pagar pela própria alforria; a este era permitida uma certa
liberdade de movimentos ou capacidade de obter e conservar a posse de bens que
lhe permitissem acumular a quantia necessária; Em síntese, o coartado era um
escravo em processo de transição para a condição social de livre (SCHARTZ,
1998, p214).
Esta
é uma das situações de ganhos que se apresenta, e Stuart Schwartz (1998), ainda
insere a tipologia de escravo coartado, ou seja, restringido à sua situação ou
limitando sua liberdade para que de alguma forma obtenha um pecúlio para sua
alforria.
A
lei 2040 de 1871 menciona em seu Art. 4º que: “É permitido ao escravo a
formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e
com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O
governo providenciará nos regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo
pecúlio.” (SEED, 2019). Ainda a referida lei comenta o fato de que tais
pecúlios seriam transmitidos por herança para os seus cônjuges e herdeiros. O
que se nota ao longo do tempo, bem antes da aplicação da lei, é a existência de
uma soma economizada e reservada
em dinheiro, como ganho do escravo e por ele armazenada, no discernimento de
que só poderia ser obtido um pecúlio se houvesse o consenso permissionário do
seu senhor ou senhora, já em época anterior ao estabelecimento da Lei.
Mas
não só de pagamentos ou de livre concessão era obtida a alforria. A permuta
entre escravo era um fato existente e pode ser constatada através do caso de:
Florência: mulatinha: que teve sua carta concedida mediante a entrega de outra
escrava pelo pai que diz ser da cativa (MOREIRA, 2007, pg. 165): de Maria; Mina[6];
alforriada pelo Sr Antônio F. Dos Anjos e sua esposa Maria Micaela do
Nascimento, em setembro de 1810, na condição da entrega pela escrava, de outra
cativa, para substituí-la e pelos bons serviços prestados (MOREIRA, 2007,
pg.165); neste registro pode se observar a situação de escravo negociando
escravo em prol de sua situação. A situação não é rara aparece também no
registro de Rita; criola; que recebe seu alforriamento de Manoel Pinto de
Moraes e sua esposa Ana Úrsula Pereira, em maio de 1805, na condição da escrava
entregar outra cativa, esta de nome Maria, devido aos seus bons serviços
(MOREIRA 2007, pg.165). Situações que nos leva observar a clara dependência do
serviço do cativo.
Reportamo-nos ao artigo de Karolina Dias
Cunha, exposto nos Anais do encontro anual de GT - GÊNERO/ANPUH sob o título,
As mulheres brasileiras no século XIX, em uma tentativa de imaginar a maneira e
o modo de vida do mundo feminino espelhado no século XIX e anterior, com o
intuído de pensarmos na condição da mulher diante da sociedade daquela época, e
de onde se retiram os seguintes recortes:
E para
as mulheres das classes mais populares, em particular as negras, indígenas e
mulatas havia a preocupação de juristas e políticos, para estes, elas eram
portadoras de vícios, da escravidão, tinham tendências a ociosidade, não
valorizavam os laços familiares, o casamento e a honra, para muitos juristas da
época seria um desafio implantar esses conceitos de valores para esta camada da
população [...] Assim, existiam em pleno século XIX mulheres solteiras,
sozinhas, separadas ou viúvas, que viviam sós com suas filhas e filhos, que
desempenhavam trabalhos doméstico fora do lar ou autônomos como as,
lavandeiras, costureiras e doceiras.(CUNHA, 2019, pg. x).
Manifestamos uma consideração sobre
este parágrafo, em não poder haver uma homogeneização de pensamentos, pois em
muitos exemplos temos escravos em relação matrimonial e familiar com prole. Seria
o caso de Ana, mulata, casado com Inácio Pires um pardo forro, alforriada em
30.09.1774 e de Rosa de cor Angola, casada com Antônio preto Angola, este com quatro
filhos, sendo ela alforriada em registro de 23.05.1775 (MOREIRA, 2007, pg.
101). Não se pode de todo dizer que se remetia a tendências ociosas, visto que eles
carregavam em seu currículo a lida da rotina serviçal mesmo em idade mais
tenra, como remete o registro de Rosa, preta e sua filha Germana, crioula, que
recebem a alforria, em 1778, pelos bons serviços prestados na condição de
permanecerem até a morte da sua Senhora (MOREIRA 2007, pg. 104). Igualmente no
século atual a situação se desempenha e se manifesta de forma similar na atual
sociedade contemporânea, onde se tem a percepção de que a busca por novos
espaços e conquistas são permanentes.
Cunha comenta que:
O
cotidiano das mulheres brasileiras no século XIX baseava-se muitas vezes nos
afazeres domésticos, eram elas que deveriam exercer as atividades relacionadas
ao lar, como cuidar dos membros da família, cozinhar, lavar as roupas e etc.
Muitas mulheres deveriam seguir os ideais católicos de família, onde elas
tinham obrigações quando jovens, casadas e até mesmo quando viúvas. Uma
característica tanto do pensamento católico, que tentava se impor a todo
momento, quanto do pensamento positivista, era acentuar a divisão entre o
trabalho externo e a vida no lar. Onde cabia ao homem a responsabilidade
financeira da família e a mulher competia todas as funções da casa, mediante a
procriação e a educação dos filhos (CUNHA, 2019, pg. X).
Ao
nos referimos a tais colocações do parágrafo supra, podemos visionar da mesma
essência de que na maior parte dos casos a atividades da mulher estavam
relacionadas ao lar, afetos pelo pensamento católico, que limitava o alcance as
lidas domésticas e doutrinava o casamento secularmente, mesmo entre os escravos
com objetivos de cristianização. Mas não se estabilizara nesta inércia, estavam
atuando nas decisões de manumissão e se projetando para além da lida da casa.
Cunha (2019) se referência a
classe das mulheres e a condição social descrevendo o seguinte:
Em sua
maioria as mulheres pertencentes à elite brasileira não desempenhavam nenhuma
tarefa doméstica, pois tinham seus empregados ou escravos para executar e
muitas gostavam de ficar à toa, já outras detestavam a vida sem ocupação e
ficavam descontentes, principalmente porque não tinham nenhum direito à
participação política e nem cursar escola de ensino superior. (CUNHA, 2019, pg.
x).
Considerando
as colocações realizadas por Cunha, resta a compreensão de que em muitos casos
haveria a possibilidade da mulher, com posse, ficar ao ócio, mais precisamente
na dependência do serviço servil, e tem-se como exemplo a libertação
condicionada de Vitória, crioula, 25 anos, alforriada em 1853, pela Sra.
Porfiria Maria da Conceição, devido aos bons serviços prestados e na condição
de mantê-los até a sua morte. Ou ao contrário, como no caso de mulher mais
determinada que liberta sem compromissos conforme percebido pela ação da Sra.
Rafaela Pinto Bandeira Freire, que liberta, em 03.1853, Barbara, cabra de 40
anos, sem restrições e condições justificando os seus serviços e amamentação de
dois filhos (MOREIRA 2007, pg. 144), não por menos excluindo, desta senhora,
sua dependência do serviço servil e de associação a criação de seus filhos, a
longo tempo. Os casos não são únicos, mas corriqueiro ao longo do período da
escravidão no Rio Grande do Sul.
O
artigo 179 da constituição de 1824 garantia a inviolabilidade dos direitos
civis da propriedade a qualquer cidadão. O artigo considerou igualmente cidadão
brasileiro os nascidos libertos no país e não considera os escravos como
cidadão, até então. Pressupõem-se, portanto, que a Senhora do escravo teria
condições legais à venda de seu servo. Importante lembrar que neste mesmo
artigo da Lei, no item XIX, ficaram
abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas
cruéis. (Brasil, 2019).
3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste
texto é possível visionar que a senhora proprietária da cativa tinha a
possibilidade de promover a manumissão sem restrições ou condicionantes, mas
não se firma os reais motivos, se por influências da legislação que se impunha
e por vezes onerava o proprietário, pelos ideais da sociedade que ansiava a
abolição ou mesmo por outras razões. Segue a forma condicional de manumissão,
onde a proprietária propriamente não abre mão dos serviços do servil até a sua
morte. Ainda podemos constatar que o pagamento pela liberdade era sem dúvidas o
de maior alcance pela Senhora do cativo.
Este
estudo, também, revela outras formas de conceder a alforria, além das três
instituídas por Medeiros (2007). Aparece em exemplos a alforria mista que traz
o pagamento vinculado a uma causa condicional, atribuída no conteúdo da carta
de libertação; outra forma de se alcançar a liberdade foi observada pela
permuta entre escravos, quando uma escrava era
substituída pelos serviços de outra, ficando a primeira em situação de
liberdade, não configurando uma condição e sim um escambo de libertação.
O
que se apresenta é que a mulher proprietária de escravo tinha de fato o poder
de consentir a liberdade do seu cativo, sob diversas formas de manumissão,
anteriormente relacionadas, influenciadas pela vivência doméstica, na
dependência dos serviços do cativo, ou mesmo na necessidade de reposição de seu
pecúlio. Constata-se, por oportuno, que a mulher forro ou mesmo escrava, tinham
seus próprios escravos, e mesmo vindo ou estando na condição de escrava,
entregavam a liberdade: por vezes na forma condicional; ou na permuta por sua
alforria ou de um parente.
É
certo que a lida diária e da relação entre a senhora e a escrava influenciava
no entrelaçamento cultural, remetendo por vir, em grande parte das cartas de
libertação a expressão: “por bons serviços prestados”, o que nos sugere um
relacionamento cordial, ou permissionário para que o escravo tivesse uma
atividade de ganho. Não se despreza o fato da expressão citada ser uma praxe
nas cartas de libertação.
O
estudo não é exaustivo e permite que se avolumem trabalhos sobre este tema, no
pensamento de que a mulher independente de sua situação ou etnia participou e
participará da formação da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
BRASIL – Constituição de 1824 –
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>.
Acesso em: 10.01.2019.
BRITO,
Edilson Pereira. História da África e dos africanos: da divisão colonial
aos
dias
atuais. Indaial: Uniasselvi, 2012.
CAMARGO,
Antonio Eleutherio de. Quadro estatístico e geographica da provincia de S.
Pedro do Rio Grande do Sul, organizado em virtude de ordem do
Excelentíssimo Sr. Vr. Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, presidente
da província. Porto Alegre, Typ. do Jornal do Commercio, 1868.168p.
CUNHA, Karolina
Dias. As mulheres brasileiras no século xix.
HOLANDA, Sergio Buarque de. Raizes do Brasil; 12 ed.
Rio de Janeiro: J. Olympo, 1978.
MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos Livres –A abolição do
tráfico de escravo no Brasil. Cia das Letras, 2017.
MOREIRA, Paulo Roberto Staut. Quem com seu trabalho nos
sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888) Porto Alegre:
Edições Est. 2007.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos e
Escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
SEED Lab. Lei do Ventre Livre. Disponível em: <http://www.historia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/fontes%20historicas/leidoventre.pdf>
Acesso em: 09.10.2019.